terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Desconstruindo o "boom" do Turismo - parte I

Um dos temas que mais marcou o mundo do turismo e viagens no ano que está a chegar ao fim e que vai continuar a marcar agenda no novo ano é o do “boom” do negócio ou, melhor dizendo do “travel market” nas suas diversas vertentes, sejam os transportes, o alojamento, as diversões, comes e bebes, etc.. Neste texto vamos designar o “bolo” do “travel market” usando genericamente a palavra “turismo”.
Este assunto tem sido abordado nos diversos “media”, desde os clássicos aos inovadores, causa polémica devido às consequências económicas ou socio-ambientais do mesmo, recorde-se o tópico que fizemos sobre outra polémica, a da “gentrification”, a qual, em muitos casos, surge associada ao “boom” de turistas em certas cidades. Enfim, dá azo a grandes debates, mas sobretudo é um fator de melhoria da Economia em muitos locais, situação que pode levar a novas “bolhas” de investimento caso se torne um fenómeno extremo. Como já vimos no passado, não falta “miopia de capital” para levar certo tipo de investimentos ao extremo. O fim da festa já todos conhecemos da pior maneira.

A primeira questão é: existe mesmo um “boom” de turismo ou trata-se de uma ilusão? Esta pergunta não tem resposta imediata. É preciso esperar uns anos para tirar conclusões sobre o que realmente se passou em períodos anteriores. A História não se compadece com conclusões precipitadas. Por outro lado, se não é um “boom” é algo que faz parte do “novo normal” de que tanto se fala? Afinal de contas, como dissemos no mesmo tópico dedicado à gentrificação, já há quase vinte anos lá no famoso Congresso da WTTC em Vilamoura, falava-se à boca cheia de crescimento anual do turismo (em certos mercados) da ordem de 10 a 15% ao ano ou, na pior hipótese, de 5 a 10% ao ano. Mais uma vez se prova que é preciso esperar para ver até que se possa escrever a História. Provou-se que nem oito nem oitenta.

Sobre Portugal, tem-se falado em “boom” generalizado. Na verdade é conveniente lembrar que nós partimos de uma base muito baixa. Começando por Lisboa: sempre foi uma cidade com alguns visitantes. E tanto mais quando surge a Portela. Mas esses muitos visitantes não chegavam para elevá-la a cidade de “turismo de massas”. A cidade levou muitos anos a crescer moderadamente para o turismo ao contrário de outras capitais europeias. É difícil de compreender esse atraso na medida em que a cidade tinha fatores de atração fabulosos. Bom preço ou relação qualidade/preço nas várias vertentes. Tinha um grau de tipicidade / autenticidade já raros na Europa. Excelente clima e bom fator humano. Talvez não tivesse aquilo que faltava: ser a primeira escolha de muitos viajantes. Tempos houve em que escolher entre visitar Lisboa ou Madrid, ou Barcelona ou Paris ou Roma não era sequer assunto. Poucos escolhiam Lisboa. Ainda por cima, voar da Europa “civilizada” para Portugal nos tempos pré-low cost não era nada em conta. Aliás, se falarmos dos preços dos voos intercontinentais a situação ainda é mais grave. Isto significa que muitos viajantes podem ter tido a vontade conhecer Lisboa mas terão optado por outras capitais. Esta situação repete-se quando se fala do Porto (de forma mais gritante), que não teve quase nunca um número de viajantes digno da cidade que é, repetindo-se a situação em muitos outros pontos de Portugal. Para piorar o cenário, a rede interna de comunicações rodoviárias e ferroviárias estava muito longe de se tornar apelativa para qualquer turista que tivesse pouco tempo para conhecer o maior número possível de lugares. Por exemplo, Évora ainda beneficiava dos turistas que outrora iam a Lisboa, mas a maioria teria mais interesse em Fátima ou Sintra. Não era fácil este Portugal dos atrasos estruturais.
Daí que os primeiros fenómenos a que podemos chamar “boom” tenham ocorrido no Algarve. Vale a pena recordar que esta era uma região quase isolada do país e da rica Europa. Tinha uma vivência e tradições muito suas. Um mundo à parte, autêntica mistura de culturas antigas. Só que… era terra de boa comida e excelente clima, quase todo o ano. Eventualmente ganha um Aeroporto internacional que fez toda a diferença como hoje sabemos.

No mundo do pós-guerra mundial, o otimismo levou tempo a regressar mas finalmente voltou com força. As sociedades mudaram para melhor. O viajar, a descoberta do mundo enraíza-se na cultura Ocidental, ao mesmo tempo que surgem as férias pagas para a maioria dos trabalhadores. Enraíza-se a cultura de férias de sol e mar. Deve-se ressaltar que quase todos os grandes destinos deste género no planeta foram “descobertos” pelos filhos de uma certa contracultura “hippie”, mochileiros, “freaks”, sendo que só depois chegou o dinheiro, os investimentos, a cultura de massas. Já tinha sido assim em Torremolinos, foi assim também em parte do Algarve. Recuperando a ideia inicial, esta região já tinha passado por vários “booms” (antes de muitos outros locais), à medida que surgiram novas ofertas de alojamento, voos “charter” (fundamental neste contexto) e novas propostas de entretenimento e experiências.

Este mercado nunca foi fácil. Há uma enorme concorrência no chamado turismo de sol e mar. Existem locais que não sendo tão apelativos, são mais em conta. Mesmo com pior relação entre qualidade e preço, acabam por ser mais baratos. Outrora, era este Algarve menos concorrencial devido ao preço dos voos, embora “barato” internamente. Por outro lado, o Algarve viveu sempre de vários “totolotos” como a instabilidade político-militar no médio oriente, a guerra da antiga Jugoslávia, novamente a instabilidade e o terrorismo no médio oriente e norte de África. Isto para dizer que aqueles que associam o atual “boom” aos problemas no médio oriente estão parcialmente equivocados.
Por exemplo, pode-se explicar os aumentos de Lisboa e do Porto à conta da crise do médio oriente? Não, não e não. Estes mercados já estavam a despontar à medida que a oferta de voos crescia velozmente. Basta ver a participação das LCC (low-cost carriers) no aumento de passageiros desembarcados no Humberto Delgado e no Sá-Carneiro.
Pode-se explicar o aumento no Algarve à conta da mesma crise? Não, mas…
… os problemas da Tunísia, Egito e da Turquia (sobretudo este destino) foram apenas mais um “totoloto” que contribui para os números espetaculares do Algarve, mas não são condição para eles. A diferença é só uma: em vez de “boom” falar-se-ia de “mini-boom”. Em vez de aumentos da ordem de 8 a 10% em número de visitantes, teríamos seguramente aumentos de apenas 4 a 6%, o que já é muito bom atendendo ao facto de estarmos a crescer anteriormente. Tivemos maiores dificuldades entre 2009 e 2012 mas a partir daí deu-se uma inversão positiva, retomando-se a senda do crescimento. Repetimos: 2016 acaba por ser excecional por somar dois fatores positivos, o crescimento natural “casou-se” com fatores externos anómalos. Nesse sentido, a hotelaria regional deve fechar o ano entre 17 e 18 milhões de dormidas num total claramente superior a 4 milhões de visitantes. Isto para não falarmos dos visitantes e das dormidas que não surgem nas estatísticas oficiais pelas razões que todos conhecem – camas paralelas ou oficiais “off the record”. Em suma, os bons números serão seguramente bem melhores, batendo-se recordes históricos.


Voltando à pergunta inicial: é “boom” ou ilusão?
Nem uma coisa nem outra, cremos. Não há ilusão nenhuma, os turistas estão aí em força numa tendência de longo prazo de aumento de visitantes e dormidas, de busca por novas experiências. Também não se trata de “boom” porque isso só o seria se se tratasse de um fenómeno de exceção e não de regra. Se fosse um episódio regional ou nacional e não global como é, ao ponto de se registarem variações positivas na maioria ampla dos mercados, dos destinos (como veremos na 2ª parte), independentemente da sua vocação como destino. Como temos dito, esta tendência estava há muito prevista graças a inúmeros fatores, a destacar:

- Forte aumento do rendimento disponível global; temos hoje mais de 7 mil milhões de pessoas num planeta cada vez mais “pequeno”, sendo que hoje existem seres humanos que têm condições para viajar como nunca antes na história. Imagine-se como será, em 2050, quando atingirmos os 10 mil milhões de habitantes na Terra. Atendendo ao facto do PIB global estar em crescimento (há décadas), podemos acreditar que teremos um forte aumento global de turistas, superior em % ao aumento populacional. Existem “opinion makers” que apontam para o seguinte quadro: se o PIB global crescer 4% ao ano, os turistas podem crescer anualmente entre 5 a 8% ao ano. Voltamos a ressalvar que o crescimento não é constante, há períodos de perdas, mas este tipo de análise não se refere ao curto prazo, não estamos a falar de 3 a 5 anos apenas, mas sim de tendências de longo prazo.

-Facilidade em viajar no país e para o estrangeiro; este é um fator primordial nesta análise. Não adianta haver mais pessoas e mais dinheiro (que é apenas base de tudo isto) se não existir uma facilidade de deslocação. Eis a decisiva contribuição para o sucesso contemporâneo desta atividade económica (tal como de muitas outras também). Viajar deixou de ser luxo de certas elites ou encantamento das chamadas classes médias. Camadas socioeconómicas que nunca o poderiam fazer, tiveram acesso a viajar não só pela melhoria do rendimento disponível como também pelo embaratecimento da viagem, da deslocação propriamente dita. Começa logo pelo desenvolvimento das infraestruturas, associado ao desenvolvimento tecnológico dos meios de transporte. Em todo o lado surgiram mais e melhores rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. Meios de transporte mais rápidos, eficientes e com superior tecnologia e eficiência energética. Exemplos práticos: custa tanto hoje um voo intercontinental como custava há vinte anos ou custa tanto hoje um voo intraeuropeu como custava há trinta anos. Por via da inflação, esses voos são hoje mais baratos em paridade de poder de compra. Isto foi e continua a ser primordial sobretudo se insistirmos em falar de “boom”.

-Internet; a facilidade de reservar tudo, desde voos, cruzeiros, alojamentos, restaurantes, atividades, etc… tudo online! Parece incrível como ainda hoje existem agentes económicos que não dão o devido valor a esta realidade, a qual está só a “gatinhar”. Senhoras e senhores, ainda não viram nada. O mundo está cada vez mais ligado apesar de tantos obstáculos. As “viagens já viajadas” (Google maps, street view, fotos, vídeos, opiniões) não foram, afinal, fator de inibição à descoberta de novos lugares – pelo contrário, tornaram-se um símbolo apelativo ainda mais pujante. Não nos esquecemos nunca de uma turista Moscovita no último verão que confessou ter sonhado durante anos com uma viagem para ver “in loco” o que estava nas fotos do seu “smartphone” – nada mais, nada menos do que a zona da praia da Marinha, Benagil e arredores. Agora é só multiplicar este exemplo por milhões! Além disso, a partilha de informação, a busca pelo melhor preço ou relação qualidade/preço ou pela superior qualidade estão facilitadas. Sendo assim, além da viagem clássica, planeada com antecedência, temos ainda o fator de consumo por impulso que gera viagens de última hora, escapadinhas de fim-de-semana, “city breaks”, entre outras, ampliando assim os gastos em viagens e lazer.

-Nova abordagem do conceito oferta-procura; sempre foi uma verdade universal: o aumento da procura leva ao aumento da oferta. Como exemplo: se muitos habitantes de Londres queriam tirar férias em Albufeira, a solução era aumentar o número de voos entre Londres e Faro e construir hotéis na zona em causa. Simples assim. Acontece, porém, que o turismo tem hoje fenómenos muito próprios. Nestes tempos de facilidade de comunicação verifica-se claramente que o aumento da oferta também leva ao aumento da procura. Estamos a falar de Hotelaria, não de uma fábrica de pneus. A abertura de novas rotas aéreas criou novas oportunidades regionais e ampliou outras já existentes. O aumento de oferta de camas colabora para os ditos “booms”. Assim como a oferta variada de F&B e outras experiências. Outrora, isto poderia desafiar a lógica mas nos novos tempos a realidade é outra. A razão pela qual a soma de ofertas de hotelaria e similares atrai mais procura é simples: essa oferta acrescida serve de estabilizador de preços mesmo nos períodos da chamada época alta. Sem esse acréscimo, os preços (dormida, comida, etc…) seriam proibitivos para alguns viajantes, os quais “fugiriam” seguramente para outras paragens. Este fator não é nada desprezível, cada vez é mais importante.

-Apetência civilizacional para tirar férias e viajar; nenhum dos fatores acima, isoladamente ou em conjunto seria suficiente para justificar a realidade que estamos a experimentar. Viajar é algo que começa por ser uma decisão pessoal, um sonho de consumo, enfim uma fuga à rotina, uma autocompensação para quem trabalhou todo um ano e que merece “esquecer” tudo assumindo uma experiência nova. Ou mesmo a experiência do chamado “gap year” para conhecer o mundo. Para não falar daqueles (muitos) que se tornam fiéis a um destino adorado, ao ponto de lá retornarem todos os anos ou mesmo todos os semestres. E nem vamos dar exemplos do passado longínquo, dos viajantes da antiga Grécia, ou da criação dos primeiros agentes de viagens no Reino Unido do século XIX. Falando apenas das últimas décadas, temos, então, a generalização do turismo por via de melhores condições laborais das chamadas “massas”, em contraste com aquilo que era atividade para elites. Desenvolve-se uma cultura de viagens que se enraíza não só no mundo anglo-saxónico, mas também na quase generalidade da Europa Ocidental. Curiosamente até no mundo da “cortina de ferro” existe uma cultura de férias, embora de circulação restrita dentro do país ou do dito bloco de países. Aos poucos, o Japão e Taiwan (Formosa) começam a entrar em cena, devido ao acelerado crescimento, tornando-se quase tão importantes como o turista Australiano e Neozelandês (outro exemplo das raízes anglo-saxónicas). Mais tarde, aparece em forte o Latino-Americano (embora mais elitista), o sul-Coreano, enfim, a R.P. da China. É verdade que são ainda muitos os casos em que as viagens, sobretudo internacionais, não são para todos os cidadãos do país A ou B, mas aqui o ponto é o título deste parágrafo: há uma verdadeira apetência civilizacional para tirar férias (em contraste com a ideia de trabalhar mais e mais), usando essas férias para viajar (sempre condicionadas ao nível do rendimento disponível). É algo transversal às diversas civilizações, com maior ou menor relevo.
Dito isto, não se pode negar que existem algumas delas com maior apetência para viagens e turismo. Seja como for, a globalização do comércio e dos negócios trouxe também uma ideia, uma visão global de padrões de consumo e bem-estar, sendo que os que não podem alcançar esses padrões, aspiram a chegar aos mesmos num futuro mais ou menos próximo. Nem que isso leve o tempo de uma ou mais gerações.

Por outro lado, nos mercados há muito consolidados, existe uma transversalidade geracional dessa apetência para viajar, para ser turista, para conhecer o mundo. Vamos pegar aqui no exemplo dos EUA: nem toda a gente viaja para o exterior, optando por viagens internas. Mas aqueles que já viajavam para o estrangeiro continuam a fazê-lo. As gerações dos chamados “baby boomers” (nascidos entre 1946 e 1964) fizeram parte da primeira grande vaga de turismo de massas. O bom da história é que continuam a viajar, seja para novas experiências, seja para revisitar, redescobrir locais já conhecidos. Já não têm medo de gastar em viagens pois já não creem num futuro amargo e numa velhice sem dinheiro. Por outro lado, temos a Geração X (conhecida como geração perdida) que, apesar de não ter ainda as mesmas garantias de manutenção de padrões de consumo e bem-estar, viaja e faz férias tão ou mais avidamente que a geração anterior, provavelmente por se tratar de uma geração de empreendedores confiantes de que o mundo passa por convulsões mas caminha para dias melhores. Para completar esta transversalidade geracional (sem irmos mais longe nesta fase), um destaque especial para a geração seguinte, os chamados “millennials” (conhecida por geração eu), nascidos entre o início dos anos oitenta e finais dos anos noventa. São, pois, pessoas que têm agora entre os vinte e os trinta e tal anos de idade. Se se pode falar de “boom” de turismo, podemos agradecer à soma das gerações referidas com destaque para a extraordinária apetência desta última para viajar. Vale destacar a importância desta geração para o turismo de massas: é a primeira geração de turistas globais “en masse” – antes os turistas eram fundamentalmente do mundo “rico”, enquanto a partir dos “millennials” já se pode dizer que o mundo é uma ostra. É a primeira geração “digital”, verdadeiramente urbana e com enorme consciência cívica e comunitária local e global. São narcisistas, sim, mas mais interessados no seu ciclo de afetos do que nas instituições clássicas. A carreira não é tudo para esta geração, a qual prefere também “viver” – uma prerrogativa para ser consumidor ávido de viagens e experiências. Por terem começado carreiras nos tempos recentes da “grande recessão”, aprenderam a ser mais comedidos no grau de exigência profissional sem perder o otimismo sobre o futuro. São hoje uma espécie de farol do “value for money”, conceito determinante nestes tempos de viagens a baixo custo. Mais do que voos “low-cost”, há uma cultura “low-cost” nas mais jovens gerações, a qual marca estes tempos de forte expansão do “travel market” global.


Nesta 1ª parte abordámos os “porquês” da forte expansão desta querida atividade económica. Em breve voltaremos para falar de “onde” tal se manifesta!

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