Um dos temas que mais marcou o mundo do turismo e viagens no
ano que está a chegar ao fim e que vai continuar a marcar agenda no novo ano é
o do “boom” do negócio ou, melhor dizendo do “travel market” nas suas diversas
vertentes, sejam os transportes, o alojamento, as diversões, comes e bebes,
etc.. Neste texto vamos designar o “bolo” do “travel market” usando
genericamente a palavra “turismo”.
Este assunto tem sido abordado nos diversos “media”, desde
os clássicos aos inovadores, causa polémica devido às consequências económicas
ou socio-ambientais do mesmo, recorde-se o tópico que fizemos sobre outra
polémica, a da “gentrification”, a qual, em muitos casos, surge associada ao
“boom” de turistas em certas cidades. Enfim, dá azo a grandes debates, mas sobretudo
é um fator de melhoria da Economia em muitos locais, situação que pode levar a
novas “bolhas” de investimento caso se torne um fenómeno extremo. Como já vimos
no passado, não falta “miopia de capital” para levar certo tipo de
investimentos ao extremo. O fim da festa já todos conhecemos da pior maneira.
A primeira questão é: existe mesmo um “boom” de turismo ou
trata-se de uma ilusão? Esta pergunta não tem resposta imediata. É preciso
esperar uns anos para tirar conclusões sobre o que realmente se passou em
períodos anteriores. A História não se compadece com conclusões precipitadas.
Por outro lado, se não é um “boom” é algo que faz parte do “novo normal” de que
tanto se fala? Afinal de contas, como dissemos no mesmo tópico dedicado à
gentrificação, já há quase vinte anos lá no famoso Congresso da WTTC em
Vilamoura, falava-se à boca cheia de crescimento anual do turismo (em certos
mercados) da ordem de 10 a 15% ao ano ou, na pior hipótese, de 5 a 10% ao ano.
Mais uma vez se prova que é preciso esperar para ver até que se possa escrever
a História. Provou-se que nem oito nem oitenta.
Sobre Portugal, tem-se falado em “boom” generalizado. Na
verdade é conveniente lembrar que nós partimos de uma base muito baixa.
Começando por Lisboa: sempre foi uma cidade com alguns visitantes. E tanto mais
quando surge a Portela. Mas esses muitos visitantes não chegavam para elevá-la
a cidade de “turismo de massas”. A cidade levou muitos anos a crescer
moderadamente para o turismo ao contrário de outras capitais europeias. É
difícil de compreender esse atraso na medida em que a cidade tinha fatores de
atração fabulosos. Bom preço ou relação qualidade/preço nas várias vertentes.
Tinha um grau de tipicidade / autenticidade já raros na Europa. Excelente clima
e bom fator humano. Talvez não tivesse aquilo que faltava: ser a primeira
escolha de muitos viajantes. Tempos houve em que escolher entre visitar Lisboa
ou Madrid, ou Barcelona ou Paris ou Roma não era sequer assunto. Poucos
escolhiam Lisboa. Ainda por cima, voar da Europa “civilizada” para Portugal nos
tempos pré-low cost não era nada em conta. Aliás, se falarmos dos preços dos
voos intercontinentais a situação ainda é mais grave. Isto significa que muitos
viajantes podem ter tido a vontade conhecer Lisboa mas terão optado por outras
capitais. Esta situação repete-se quando se fala do Porto (de forma mais
gritante), que não teve quase nunca um número de viajantes digno da cidade que
é, repetindo-se a situação em muitos outros pontos de Portugal. Para piorar o
cenário, a rede interna de comunicações rodoviárias e ferroviárias estava muito
longe de se tornar apelativa para qualquer turista que tivesse pouco tempo para
conhecer o maior número possível de lugares. Por exemplo, Évora ainda
beneficiava dos turistas que outrora iam a Lisboa, mas a maioria teria mais
interesse em Fátima ou Sintra. Não era fácil este Portugal dos atrasos
estruturais.
Daí que os primeiros fenómenos a que podemos chamar “boom”
tenham ocorrido no Algarve. Vale a pena recordar que esta era uma região quase isolada
do país e da rica Europa. Tinha uma vivência e tradições muito suas. Um mundo à
parte, autêntica mistura de culturas antigas. Só que… era terra de boa comida e
excelente clima, quase todo o ano. Eventualmente ganha um Aeroporto
internacional que fez toda a diferença como hoje sabemos.
No mundo do pós-guerra mundial, o otimismo levou tempo a
regressar mas finalmente voltou com força. As sociedades mudaram para melhor. O
viajar, a descoberta do mundo enraíza-se na cultura Ocidental, ao mesmo tempo
que surgem as férias pagas para a maioria dos trabalhadores. Enraíza-se a
cultura de férias de sol e mar. Deve-se ressaltar que quase todos os grandes
destinos deste género no planeta foram “descobertos” pelos filhos de uma certa contracultura
“hippie”, mochileiros, “freaks”, sendo que só depois chegou o dinheiro, os
investimentos, a cultura de massas. Já tinha sido assim em Torremolinos, foi
assim também em parte do Algarve. Recuperando a ideia inicial, esta região já
tinha passado por vários “booms” (antes de muitos outros locais), à medida que
surgiram novas ofertas de alojamento, voos “charter” (fundamental neste
contexto) e novas propostas de entretenimento e experiências.
Este mercado nunca foi fácil. Há uma enorme concorrência no
chamado turismo de sol e mar. Existem locais que não sendo tão apelativos, são
mais em conta. Mesmo com pior relação entre qualidade e preço, acabam por ser
mais baratos. Outrora, era este Algarve menos concorrencial devido ao preço dos
voos, embora “barato” internamente. Por outro lado, o Algarve viveu sempre de
vários “totolotos” como a instabilidade político-militar no médio oriente, a
guerra da antiga Jugoslávia, novamente a instabilidade e o terrorismo no médio
oriente e norte de África. Isto para dizer que aqueles que associam o atual
“boom” aos problemas no médio oriente estão parcialmente equivocados.
Por exemplo, pode-se explicar os aumentos de Lisboa e do
Porto à conta da crise do médio oriente? Não, não e não. Estes mercados já
estavam a despontar à medida que a oferta de voos crescia velozmente. Basta ver
a participação das LCC (low-cost carriers) no aumento de passageiros
desembarcados no Humberto Delgado e no Sá-Carneiro.
Pode-se explicar o aumento no Algarve à conta da mesma
crise? Não, mas…
… os problemas da Tunísia, Egito e da Turquia (sobretudo
este destino) foram apenas mais um “totoloto” que contribui para os números
espetaculares do Algarve, mas não são condição para eles. A diferença é só uma:
em vez de “boom” falar-se-ia de “mini-boom”. Em vez de aumentos da ordem de 8 a
10% em número de visitantes, teríamos seguramente aumentos de apenas 4 a 6%, o
que já é muito bom atendendo ao facto de estarmos a crescer anteriormente.
Tivemos maiores dificuldades entre 2009 e 2012 mas a partir daí deu-se uma
inversão positiva, retomando-se a senda do crescimento. Repetimos: 2016 acaba
por ser excecional por somar dois fatores positivos, o crescimento natural
“casou-se” com fatores externos anómalos. Nesse sentido, a hotelaria regional
deve fechar o ano entre 17 e 18 milhões de dormidas num total claramente
superior a 4 milhões de visitantes. Isto para não falarmos dos visitantes e das
dormidas que não surgem nas estatísticas oficiais pelas razões que todos
conhecem – camas paralelas ou oficiais “off the record”. Em suma, os bons
números serão seguramente bem melhores, batendo-se recordes históricos.
Voltando à pergunta inicial: é “boom” ou ilusão?
Nem uma coisa nem outra, cremos. Não há ilusão nenhuma, os
turistas estão aí em força numa tendência de longo prazo de aumento de
visitantes e dormidas, de busca por novas experiências. Também não se trata de
“boom” porque isso só o seria se se tratasse de um fenómeno de exceção e não de
regra. Se fosse um episódio regional ou nacional e não global como é, ao ponto
de se registarem variações positivas na maioria ampla dos mercados, dos
destinos (como veremos na 2ª parte), independentemente da sua vocação como
destino. Como temos dito, esta tendência estava há muito prevista graças a
inúmeros fatores, a destacar:
- Forte aumento do rendimento disponível global; temos hoje
mais de 7 mil milhões de pessoas num planeta cada vez mais “pequeno”, sendo que
hoje existem seres humanos que têm condições para viajar como nunca antes na
história. Imagine-se como será, em 2050, quando atingirmos os 10 mil milhões de
habitantes na Terra. Atendendo ao facto do PIB global estar em crescimento (há
décadas), podemos acreditar que teremos um forte aumento global de turistas,
superior em % ao aumento populacional. Existem “opinion makers” que apontam
para o seguinte quadro: se o PIB global crescer 4% ao ano, os turistas podem
crescer anualmente entre 5 a 8% ao ano. Voltamos a ressalvar que o crescimento
não é constante, há períodos de perdas, mas este tipo de análise não se refere
ao curto prazo, não estamos a falar de 3 a 5 anos apenas, mas sim de tendências
de longo prazo.
-Facilidade em viajar no país e para o estrangeiro; este é
um fator primordial nesta análise. Não adianta haver mais pessoas e mais
dinheiro (que é apenas base de tudo isto) se não existir uma facilidade de deslocação.
Eis a decisiva contribuição para o sucesso contemporâneo desta atividade
económica (tal como de muitas outras também). Viajar deixou de ser luxo de
certas elites ou encantamento das chamadas classes médias. Camadas socioeconómicas
que nunca o poderiam fazer, tiveram acesso a viajar não só pela melhoria do
rendimento disponível como também pelo embaratecimento da viagem, da deslocação
propriamente dita. Começa logo pelo desenvolvimento das infraestruturas,
associado ao desenvolvimento tecnológico dos meios de transporte. Em todo o
lado surgiram mais e melhores rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. Meios
de transporte mais rápidos, eficientes e com superior tecnologia e eficiência
energética. Exemplos práticos: custa tanto hoje um voo intercontinental como
custava há vinte anos ou custa tanto hoje um voo intraeuropeu como custava há
trinta anos. Por via da inflação, esses voos são hoje mais baratos em paridade
de poder de compra. Isto foi e continua a ser primordial sobretudo se
insistirmos em falar de “boom”.
-Internet; a facilidade de reservar tudo, desde voos,
cruzeiros, alojamentos, restaurantes, atividades, etc… tudo online! Parece
incrível como ainda hoje existem agentes económicos que não dão o devido valor
a esta realidade, a qual está só a “gatinhar”. Senhoras e senhores, ainda não
viram nada. O mundo está cada vez mais ligado apesar de tantos obstáculos. As
“viagens já viajadas” (Google maps, street view, fotos, vídeos, opiniões) não
foram, afinal, fator de inibição à descoberta de novos lugares – pelo
contrário, tornaram-se um símbolo apelativo ainda mais pujante. Não nos
esquecemos nunca de uma turista Moscovita no último verão que confessou ter
sonhado durante anos com uma viagem para ver “in loco” o que estava nas fotos
do seu “smartphone” – nada mais, nada menos do que a zona da praia da Marinha,
Benagil e arredores. Agora é só multiplicar este exemplo por milhões! Além
disso, a partilha de informação, a busca pelo melhor preço ou relação qualidade/preço
ou pela superior qualidade estão facilitadas. Sendo assim, além da viagem
clássica, planeada com antecedência, temos ainda o fator de consumo por impulso
que gera viagens de última hora, escapadinhas de fim-de-semana, “city breaks”,
entre outras, ampliando assim os gastos em viagens e lazer.
-Nova abordagem do conceito oferta-procura; sempre foi uma
verdade universal: o aumento da procura leva ao aumento da oferta. Como
exemplo: se muitos habitantes de Londres queriam tirar férias em Albufeira, a
solução era aumentar o número de voos entre Londres e Faro e construir hotéis
na zona em causa. Simples assim. Acontece, porém, que o turismo tem hoje fenómenos
muito próprios. Nestes tempos de facilidade de comunicação verifica-se
claramente que o aumento da oferta também leva ao aumento da procura. Estamos a
falar de Hotelaria, não de uma fábrica de pneus. A abertura de novas rotas
aéreas criou novas oportunidades regionais e ampliou outras já existentes. O
aumento de oferta de camas colabora para os ditos “booms”. Assim como a oferta
variada de F&B e outras experiências. Outrora, isto poderia desafiar a
lógica mas nos novos tempos a realidade é outra. A razão pela qual a soma de
ofertas de hotelaria e similares atrai mais procura é simples: essa oferta
acrescida serve de estabilizador de preços mesmo nos períodos da chamada
época alta. Sem esse acréscimo, os preços (dormida, comida, etc…) seriam
proibitivos para alguns viajantes, os quais “fugiriam” seguramente para outras
paragens. Este fator não é nada desprezível, cada vez é mais importante.
-Apetência civilizacional para tirar férias e viajar; nenhum
dos fatores acima, isoladamente ou em conjunto seria suficiente para justificar
a realidade que estamos a experimentar. Viajar é algo que começa por ser uma
decisão pessoal, um sonho de consumo, enfim uma fuga à rotina, uma
autocompensação para quem trabalhou todo um ano e que merece “esquecer” tudo
assumindo uma experiência nova. Ou mesmo a experiência do chamado “gap year”
para conhecer o mundo. Para não falar daqueles (muitos) que se tornam fiéis a
um destino adorado, ao ponto de lá retornarem todos os anos ou mesmo todos os
semestres. E nem vamos dar exemplos do passado longínquo, dos viajantes da
antiga Grécia, ou da criação dos primeiros agentes de viagens no Reino Unido do
século XIX. Falando apenas das últimas décadas, temos, então, a generalização
do turismo por via de melhores condições laborais das chamadas “massas”, em
contraste com aquilo que era atividade para elites. Desenvolve-se uma cultura
de viagens que se enraíza não só no mundo anglo-saxónico, mas também na quase
generalidade da Europa Ocidental. Curiosamente até no mundo da “cortina de
ferro” existe uma cultura de férias, embora de circulação restrita dentro do
país ou do dito bloco de países. Aos poucos, o Japão e Taiwan (Formosa) começam
a entrar em cena, devido ao acelerado crescimento, tornando-se quase tão
importantes como o turista Australiano e Neozelandês (outro exemplo das raízes anglo-saxónicas).
Mais tarde, aparece em forte o Latino-Americano (embora mais elitista), o
sul-Coreano, enfim, a R.P. da China. É verdade que são ainda muitos os casos em
que as viagens, sobretudo internacionais, não são para todos os cidadãos do
país A ou B, mas aqui o ponto é o título deste parágrafo: há uma verdadeira
apetência civilizacional para tirar férias (em contraste com a ideia de
trabalhar mais e mais), usando essas férias para viajar (sempre condicionadas
ao nível do rendimento disponível). É algo transversal às diversas civilizações,
com maior ou menor relevo.
Dito isto, não se pode negar que existem algumas delas com
maior apetência para viagens e turismo. Seja como for, a globalização do
comércio e dos negócios trouxe também uma ideia, uma visão global de padrões de
consumo e bem-estar, sendo que os que não podem alcançar esses padrões, aspiram
a chegar aos mesmos num futuro mais ou menos próximo. Nem que isso leve o tempo
de uma ou mais gerações.
Por outro lado, nos mercados há muito consolidados, existe
uma transversalidade geracional dessa apetência para viajar, para ser turista,
para conhecer o mundo. Vamos pegar aqui no exemplo dos EUA: nem toda a gente
viaja para o exterior, optando por viagens internas. Mas aqueles que já
viajavam para o estrangeiro continuam a fazê-lo. As gerações dos chamados “baby
boomers” (nascidos entre 1946 e 1964) fizeram parte da primeira grande vaga de
turismo de massas. O bom da história é que continuam a viajar, seja para novas
experiências, seja para revisitar, redescobrir locais já conhecidos. Já não têm
medo de gastar em viagens pois já não creem num futuro amargo e numa velhice
sem dinheiro. Por outro lado, temos a Geração X (conhecida como geração
perdida) que, apesar de não ter ainda as mesmas garantias de manutenção de
padrões de consumo e bem-estar, viaja e faz férias tão ou mais avidamente que a
geração anterior, provavelmente por se tratar de uma geração de empreendedores
confiantes de que o mundo passa por convulsões mas caminha para dias melhores.
Para completar esta transversalidade geracional (sem irmos mais longe nesta
fase), um destaque especial para a geração seguinte, os chamados “millennials”
(conhecida por geração eu), nascidos entre o início dos anos oitenta e finais dos anos
noventa. São, pois, pessoas que têm agora entre os vinte e os trinta e tal anos de idade. Se se pode falar de “boom” de turismo, podemos agradecer à soma
das gerações referidas com destaque para a extraordinária apetência desta
última para viajar. Vale destacar a importância desta geração para o
turismo de massas: é a primeira geração de turistas globais “en masse” – antes
os turistas eram fundamentalmente do mundo “rico”, enquanto a partir dos
“millennials” já se pode dizer que o mundo é uma ostra. É a primeira geração “digital”,
verdadeiramente urbana e com enorme consciência cívica e comunitária local e
global. São narcisistas, sim, mas mais interessados no seu ciclo de afetos do
que nas instituições clássicas. A carreira não é tudo para esta geração, a qual prefere
também “viver” – uma prerrogativa para ser consumidor ávido de viagens e
experiências. Por terem começado carreiras nos tempos recentes da “grande
recessão”, aprenderam a ser mais comedidos no grau de exigência profissional
sem perder o otimismo sobre o futuro. São hoje uma espécie de farol do “value
for money”, conceito determinante nestes tempos de viagens a baixo custo. Mais
do que voos “low-cost”, há uma cultura “low-cost” nas mais jovens gerações, a
qual marca estes tempos de forte expansão do “travel market” global.
Nesta 1ª parte abordámos os “porquês” da forte expansão desta querida atividade económica. Em breve voltaremos para falar de “onde” tal se manifesta!
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